Escolha um só livro de Carlos Heitor Cony, morto nesta sexta (5), aos 91 anos, se você puder. O melhor, a obra-prima inquestionável e incontornável, ou aquele em que o autor foi mais fundo em suas inquietações de romancista. Não é tarefa fácil.
Muitos leitores não esquecem “O Ventre”, o romance de estreia publicado em 1958, mas escrito três anos antes. Segundo o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, Cony entrou em sua sala, trazendo os originais, “como um touro miúra”.
Essa força brota do livro, a história de um jovem que não consegue se encaixar na sociedade. O próprio escritor o via como um exercício sartriano, cheio de repulsa e náusea. Críticos apontaram a influência de Machado de Assis, em especial de “Dom Casmurro”.
Em forma de diário e com forte base autobiográfica, “Informação ao Crucificado” (1961) é um acerto de contas com o desejo de tornar-se padre. Num domingo de outubro de 1945, Cony abandonara o seminário. Na última página do romance, escreve: “E eis que vos dou a informação: Deus acabou”.
No entanto, os conflitos religiosos nunca o abandonaram. De tempos em tempos, ele anunciava a publicação de “Messa pro Papa Marcello”, uma biografia espiritual e espécie de continuação de “Informação ao Crucificado”.
Um livro que não deslanchou. Parece que restaram apenas cem páginas de manuscrito. O problema é que não havia, no autor, “a determinação do personagem de aceitar o fator divino”, como explicou Cony numa entrevista. Deus continuava “acabado”.
“Pessach: a Travessia” (1967) é o seu romance mais político. Se a direita já não o topava por conta das críticas ao regime militar reunidas no livro-manifesto “O Ato e o Fato”, publicado logo depois do golpe de 1964, a esquerda estrilou com o enredo: um escritor cético (muito parecido com o Cony da vida real) acaba envolvido na luta armada e, no fim, constata a traição do Partido Comunista.
Perseguido, sem emprego em jornais ou revistas, o escritor sobreviveu adaptando clássicos da literatura universal. O romance que publicaria em seguida, “Pilatos” (1974), é um ponto sem volta em sua trajetória.
O estilo nervoso e ágil, em que vírgulas substituem pontos, à maneira do cronista esportivo Mario Filho, atinge o auge. O personagem castrado, que carrega o pênis num vidro de compota, vaga pelas ruas do centro decadente do Rio, deparando-se com prostitutas, beatas, fascistas, mendigos, bêbados, gigolôs e até um representante do cinema novo. Nada na literatura brasileira tem semelhança com “Pilatos” no seu humor corrosivo. Um marco que deixaria o autor vazio de literatura.
Só voltaria a publicar 21 anos depois: “Quase Memória” (1995), um relato comovente, se transformou em fenômeno do boca a boca entre leitores. Quando se esperava que em seguida Cony fizesse um livro mais ou menos igual, que repetisse o sucesso, o escritor deu outra volta no parafuso, com o extraordinário “O Piano e a Orquestra” (1996). É o meu preferido.
(Coluna de Alvaro Costa e Silva para a Folha de São Paulo, 6/01/18)
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